Mal posso acreditar que estou escrevendo de novo
Mal posso acreditar que estou escrevendo de novo.
Condenei-me ao silêncio por motivos fortes, depois de diversas tentativas frustradas de terapia. Falar sobre o que sinto sempre me pareceu alimentar mais e mais os maus sentimentos. Dar força ao que se pretendia calar. Então optei por outra estratégia. Isolamento. E funcionou enquanto pude sustentar. Mas a cauda do calango cresce toda vez que é cortada.
Se hoje retomo este mau hábito, é por ter minado toda chance de apoio. Estourado todo e qualquer refúgio. Brincado com todas as estratégias. Preciso retornar ao básico. Eu e meus cadernos. Agora, eu e este documento aberto no computador, conectado a uma nuvem de dados da minha pessoa. Da pessoa que crio todos os dias para mim. Para sustentar o insustentável: A vida do que já está morto.
Sim, este sentimento eu nunca consegui matar em mim. Deitei na minha cama hoje, por volta das quatro ou cinco da tarde, deitei-me como deitava-me no hospital. A cabeça voltada para a janela, as pernas imóveis, a solidão e a espera. Pensava palavras e palavras mas não tinha com quem compartilhá-las de alguma forma que me desse conforto. Não tinha um impulso no qual convertê-las. Tive de aceitar a dura realidade de que precisava escrever. Isso ou procurar outro terapeuta. E já estou cansado de outros.
O ano é dois mil e vinte e um, observamos o mundo por janelas e telas enquanto vivemos o prolongamento anti-natural de uma pandemia devido a um desgoverno. Acredito, sim, que há vida lá fora, que algo me espera, que ainda tenho e temos muito a construir. A crueldade da esperança é esta: Por acreditar, resisto. Imaginei-me de pulsos cortados sobre os olhos sangrando sem respiração. Imaginei-me novamente entupido de remédios, mas sem urgências de socorro. Imaginei-me afogado, até que me lembrei. Eu não pude deixar de me lembrar. Eu já estou morto.
Essa sensação me acompanha a mais tempo que consigo medir, mas se intensifica com o passar dos anos - e das péssimas aventuras que me enfiei neles. O ano era de dois mil e dezesseis, o ano em que explodiu a bomba. Eu era a bomba. A minha mente, no caso. Estilhaços de noites mal dormidas, conflitos mal resolvidos, acúmulo de buracos na própria trama e uma narrativa que não se sustentava. Várias narrativas que se cruzavam, se tocavam, e se abandonavam. Várias versões de mim, colidindo. O meu próprio e auto-contido juízo final. E eu me julguei culpado. A sentença? Tive de dar fim em mim.
Tudo isso para descobrir, de diversas formas, que ninguém escolhe a própria hora. A liberdade da tentativa é apenas isso, tentativa. Os fatores que determinam de fato a morte ou a sobrevivência fogem da mão de qualquer ser individual. Ninguém escolhe a própria hora, mas todos podem tentar. E se a tentativa der errado, bem…
Sou especialista em trilhas incompletas. Tinha poucos anos quando larguei as aulas de violão. Largar foi meu sobrenome e meu fardo por bastante tempo. Curso atrás de curso, trabalho atrás de trabalho, namoro atrás de namoro, situação atrás de situação. Uma coisa fugidia me inquietava dentro de mim. Uma coisa que surgiu em algum lugar… Ou que eu já nasci com isso dentro. De fato, a dissimulação sempre foi um dos meus recursos covardes mais utilizados. Nada que eu me orgulhe, mas nada que eu tenha forças ainda para esconder. Estou todo revelado, apesar de escondido. Sou um mapa que leva a lugar nenhum.
Falo muito de mim sim, dentro deste corpo não há muito de outro assunto a se falar no momento. Posso resgatar algumas coisas, pormenores de passados, mas vai doer. E da dor do arrependimento eu tento não beber. Mas acredito que ela já se tornou minha saliva.
Minha dinda morreu sexta-feira. Eu fiquei sabendo sexta-feira. Foi uma semana travando complicações de saúde e… Poucas semanas antes, ela queria falar comigo. Ela pediu para me avisarem disto e eu me preparei, esperei. Nada foi falado. Tudo aconteceu tão rápido. E eu fico me perguntando aqui o que ela queria me falar. Não que eu queira retomar o contato e a crença em fantasmas. Não que eu tenha tido a crença, mas talvez eu queria muito ter. Talvez eu só vi, vivi e vivenciei o horror naqueles quartos porque… Esquece. Já estou mudando de assunto. Levando a mim de novo. Tenho muitas experiências problemáticas a relatar. Pontos sem nó. E o nó da garganta afrouxa diante da liberdade da folha.
“Folha”. Posso chamar a página digital assim?
Escrevo, escrevo e não me explico. Não quero imaginar um público. Também não sei se quero guardar essas palavras para nunca serem pronunciadas. Eu só preciso falar, escrever. Escrever pois falar requer uma coragem que não tenho. Uma comunicação a qual não quero e até temo ter de recorrer.
Meu nome é Lucas Santhyago Brandão Dias, nasci em dezoito de fevereiro de mil novecentos e noventa e quatro, uma sexta-feira, às oito da manhã. Em Barreiras, na Bahia. Porque retomo estes dados de ficha catalográfica? Não sei. Senti a necessidade. Para dar um start. Para começar.
Tenho vinte e sete anos neste que para minha narrativa pessoal seria mais uma vez um ano de retomada. Quando tive vinte e seis, o ano era de abandono. Vinte e cinco, outra pífia retomada. Vinte e quatro, aprender a caminhar. Vinte e três, nascer de novo. Vinte e dois, me condenar. Vinte e um, vinte, dezenove, me bagunçar. “Deixa eu bagunçar você”, canta a Liniker na música. Foi mais ou menos por aí. Foi bem por aí. Retomo depois.
Gostei dessa coisa dos números. Vou beber uma água, respirar, e tentar continuar.
Dezoito, o idealista. Dezessete, o descobridor. Dezesseis, o lobo solitário. Tentei.
Quinze, o caos da puberdade e da auto-ficção. Talvez essa eu comecei de fato aos quatorze, quando andava com uma mentirosa e nem sabia. É provável que os mitomaníacos se aproximem sem se conhecerem. Sintam o cheiro um do outro. Necessitem de um espaço para se conhecerem. Um espelho.
Treze, a farsa da despedida. Os doze foram uma vergonha. Aliás, dos onze pra trás isso foi recorrente: Vergonha. Mas dos onze aos treze a vergonha adquiriu tons sexuais. Antes tinha somente tons românticos. Não que sexo ou romance de fato acontecessem. Mas quem vive no mundo da Lua encara esses assuntos de outras formas, sabe?
Nos dez, agulhas estouraram as minhas bolhas, os meus espaços de conforto. Não só os meus, aliás. Esses desastres sempre me atingiam como em ondas, já que estou de certa forma no meio. Sempre corria um pouco pra frente e um pouco pra trás. Dos sete aos dez estive assim, romântico e confuso. Antes dos sete, os conflitos eram diferentes. Eu era diferente. Mas não o diferente invisível dos sete aos dez. Antes dos sete, a diferença me marcava.
Acho que não houve um dia em que a diferença não me marcou.
No que pode um menino baiano ser tão diferente desde o nascimento?
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