Esper-ânsia
Esperança vicia.
É o que mais tenho visto nesta pandemia: Na esperança de um amanhã glorioso, as pessoas não valorizam o hoje. Não que hoje tenha muita coisa que valha a pena ser vivida. É morte e escândalo todo dia. Mas… O que diabos estou escrevendo?
Dizem por aí que existem dois tipos de ansiosos: Os presos ao futuro, e os presos ao passado. O bom seria focar no presente. Certa vez li uma frase, não lembro de quem: Só se prenda ao que te liberta. É como eu aconselhava quem passasse por impasses de novela: Se tens dois lados que podes seguir, e um deles pede para escolher (ou ele ou eu), vá para o lado que não te pediu para escolher. Não que escolhas e pedidos de escolhas aconteçam de forma assim tão explícita na vida real. Eu mesmo nunca fiz o que prego. É difícil resistir a pressão. É fácil se acomodar. É cômodo escapar pelas beiradas.
É um jogo de palavras engraçado: Presos e presente. É possível se prender ao presente? Viver tanto o aqui e agora que… Esquece.
Ontem conversei com alguém sobre Alto Paraíso. Mas é algo que ocorre em vários lugares, basta o lugar não ser nosso cotidiano, nossa casa. Mas uma fuga. Aquela sensação de suspender o tempo e a realidade. Só lembrar que as coisas passam na estrada de volta. Um sentimento de estar meio aéreo, alto, limpo. Fico tão quieto e concentrado, ativo e reflexivo. É como fumar maconha. Eu fico assim com a erva. Não fico risonho e sociável como os outros. Bebendo, fico safado e sem limites. Outras drogas que experienciei me deixaram bem… Digo, talvez tenha sido o contexto.
Já contei aqui do meu surto?
É curioso porque sempre conto essa história. Mesmo sendo uma grande desgraça, a sequência de acontecimentos quase sem sentido ou ordenação me fascina. Nada parece causa o bastante, nem consequência o bastante. É tudo meio solto, flutuante, com buracos mesmo sendo real. Pode ter sido ilusório em partes, pode ter sido ressignificado pelo trauma, ou encoberto pelas constantes repetições. Mas de fato foram momentos excepcionais, daqueles que não acontecem sempre. É bom que não aconteça mesmo.
É bacana ter um pouco de magia no cotidiano, mas magia demais deixa o mago tonto. Não tenho a sabedoria ainda para ter certeza do que é real ou não. Me apego a padrões e interpretações, definidores e definições. Construo o meu real e o meu imaginário a partir dos referenciais que tenho. Que são meio mambembes mas úteis. Me tiraram de uma grande enrascada esquizofrênica para um transtorno obsessivo-compulsivo. É estranho mas é bem melhor.
O transtorno mais recente também veio pelas minhas tentativas de definir o que posso e o que não posso sentir ou fazer. Como agir em situações sociais. Como sumir com frequência para não perder-me de mim mesmo. É complicado ser meu próprio mestre. O autodidata sempre se perde.
Mas tive bons referenciais anteriores. Fiz muita terapia desde o surto. Primeiro a doutora Elizabeth Takahashi. Ela me hipnotizou, eu acho. Conheceu-me muito pelas palavras dos outros, até porque as minhas à época não faziam muito sentido. Me levou, talvez sem saber ou perceber, a encarar traumas e pessoas do passado num mundo meio imaginário, esquisito, porém traumático e ressignificador. Reformulou meus traumas de uma forma que afastasse o pânico e explicasse a identidade. Racionalizei uma série de questões místicas antes de escapar dali. Escapei sim, fugido, com o passado de outras pessoas na cabeça e uma troca de experiências involuntária. Acho que por abandonar o processo no meio, sofri consequências mais pesadas do que devia.
Também fui meio rude com ela quando ela me ligou. Mas isso é outra história.
Depois da doutora Takahashi, teve o psiquiatra Ivan. Ele era esquisito, de um jeito afetuoso. Ouvia-me dizer grandiosos absurdos e como cúmplice de um crime, pegava nas minhas mãos, olhava nos meus olhos, e dizia que iria ficar tudo bem. Às vezes ele falava comigo sem ninguém por perto, eu que pedia. Noutras falava com minha mãe sem que eu estivesse perto. Nessas ele que pedia. Quem sabe para identificar se meus crimes neuróticos eram verdadeiros. Não que minha mãe pudesse saber muita coisa. Nem eu sei.
O consultório dele era deveras assustador. Desde a secretária com uma agenda infinita até a sala de espera apertada com biscoitos velhos, café frio e reprises de novelas. As pessoas ao redor não me faziam sentir-me melhor por não estar sozinho. Pelo contrário. Tinham os trabalhadores cansados loucos por algo que os desse mais energia e foco para trabalhar e esquecer. As idosas perdidas entre uma infância fantasiosa e uma idade de incompreensão. As insatisfeitas com a própria aparência rodeadas de pessoas jovens e belas para lembrá-las do que consideravam ser seus fracassos. Os barbudos e bigodudos com cara de usuários de viagra. Não que eles tenham uma cara, não sei se um dia conheci algum. Mas eles tinham olhos demais para lugares íntimos demais das pessoas.
Desse doutor foi mais difícil escapar. Os remédios me deixavam tão lento e farto que para o mundo era como se eu melhorasse. Tanto que em pouco tempo me liberaram para retomar minha bagunçada, independente e inconsequente vida. Daí pulei de um viaduto.
Ok, ficou meio pesado de repente. Mas foi assim que aconteceu.
Nada premeditado.
Eram semanas engraçadas.
Nada fazia sentido, mas eu adorava colorir as coisas.
Me encontrava com meninos, assistia aulas cansadas e cansativas, fazia rodinhas de amigos para fofocar, nadava no lago, tentava comer sempre que possível, e carregava meus remédios pra lá e pra cá. Contava do meu fardo como se fosse um caso engraçado. O que todo mundo estranhava pois sabia e tinha visto e entendido o peso real das coisas. E viam a neurose desesperada no meu olhar.
Sempre fui mais transparente do que queria. Uma pena para um mentiroso.
Eu caminhava muito. Quase sempre em busca de companhia, quase sempre só.
Foi numa quinta a caminhada em que raspei a cabeça, tirei fotos num balanço com uma amiga, com quem nadei no lago, me senti parte de uma amizade sólida e interessante, sorri muito, comi bem, fiquei feliz por existir.
Na quarta anterior ou na sexta posterior, quem sabe até foi na segunda seguinte, mas acho que não, tirei uma foto pelado de costas no lago ao pôr do Sol. Na verdade quem tirou foi o menino que estava comigo, que delícia de menino. Leo o nome dele. Tem uma tatuagem de sankofa. Um homem sábio, generoso, gostoso, estiloso e elegante. Original da cabeça aos pés. Me beijava com paixão e me chupava com gosto. Eu passeava as mãos por seu corpo e ficava louco com cada centímetro de pele explorada. Belos mamilos. E eu amo uma barriga.
Não era o único com quem eu saía na época, longe disso. Mas era o mais especial. Talvez o mais permissivo. Os outros meninos tinham medo de mim. Da minha voracidade, eu acho. Eu avançava neles com o desespero de alguém que nunca ficou no armário mas também nunca havia sido desejado antes. Pelo menos não explicitamente.
Os outros meninos eram cheios de não-me-toques. Talvez recebiam desejo em excesso, estavam cheios de serem aproveitados, queriam construir algo calmo e sério mas… Eu só queria curtir. Não que algo sério não pudesse acontecer. Mas antes do surto eu só tinha namorado sério, namoro atrás de namoro. Quase sempre meninas, sempre geniosas e encantadoras, conquistáveis enquanto me conquistavam meio sem querer. E como uma das minhas grandes injustiças do passado foi terminar algo muito sério e longo por dúvidas acerca da minha bissexualidade, eu tava decidido a solucionar essas dúvidas.
Não é muito fácil ser bissexual às vezes, ou pan. É como se eu tivesse que provar, não só para mim, mas para o mundo inteiro, que sinto sim atração por diversos tipos e gêneros de pessoas e posso sim me apaixonar e ter um lance bacana com cada uma e qualquer uma dessas pessoas, mas não de uma forma totalmente promíscua, muito provavelmente até sempre bastante apaixonado e entregue.
Existem uma série de conceitos e palavras difíceis rodeando os tabus da sexualidade e do gênero. Tem a heterossexualidade compulsória, o medo do armário da homossexualidade, a disforia (e até às vezes a euforia) do gênero, de ser quem se é, a indústria do consumo e a possibilidade (ou impossibilidade) de uma abolição libertadora, a revolução sexual e as discussões entre ideologias conservadoras e identidades revolucionárias, que sempre estiveram e estão aí e talvez sempre estarão, mas são escamoteadas por discursos canônicos, hegemônicos, de poder e etc e tal. Tudo isso deixa a gente num limbo. Fica difícil ser um corpo e relacionar-se com corpos no mundo da alma. Fica difícil ser uma alma e relacionar-se com almas no mundo do corpo. E os dois mundos estão juntos mas querem estar separados. E nós na interseção ficamos como um cabo de guerra. Uma corda sendo puxada para lá e pra cá. Cansa bastante.
Também tive confusões de gênero, é provável que eu ainda tenha. Mas isso também é outra história, muito mais confusa e mirabolante do que posso contar agora, com o tamanho que está ficando esse texto.
O fato é que é difícil ser o que se é num mundo em que você tem que saber o que se é, ter o que se é, decidir o que se é, comprar o que se é e até vender o que se é. São tantos verbos minando e contornando o ser que ele fica sem saída. Produzir parece mais importante que criar, e criar parece coisa dos deuses. Explicar é mais relevante que explicitar, mesmo que algumas coisas nunca tenham e nunca terão explicação. Sentir é difícil, sentir é estranho. É mais fácil pensar, mas pensar bem é pra poucos. Tudo jogo.
Agora a música do BBB não sai da minha cabeça. Não sei porquê.
Comecei várias histórias e terminei nenhuma, porque sou um ser interminado, ainda estou a viver. A gente só pode ser plenamente terminado na morte, talvez nem aí. A maioria das pessoas é maior que a morte. Fica na memória, mesmo que em traços pequenos, em cinzas espalhadas pelo mar. Ou jogadas do alto de um prédio. O corpo enterrado vira alimento de fungos e bactérias que parasitam plantas que viram alimento de animais que junto das plantas também viram nosso alimento. É um ciclo sem fim e sem começo, tudo é assim e talvez assim sempre foi e será. Só que mais automatizado, comercializado, fabricado, marcado, capitalizado, vendido e comprado. Sim, eu não gosto da vida à venda.
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